quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O FENECER DOS SONHOS




O FENECER DOS SONHOS

Naquele dia, quando minha mãe disse que o levaria ao hospital e que eu permanecesse ali, cuidando de tudo, de certo que não tive dúvidas, de que ele não mais retornaria ao nosso convívio. É curioso perceber que a vida de uma família pode mudar tanto em poucos minutos. Avistei a porta se fechando e eles partindo naquele carro. Mais tarde eu saberia que meu pai tinha sofrido mais um infarto, entre tantos que já havia tido, mas até aquele momento, ainda se mantinha vivo. Minha mãe acreditava que ele sairia dessa como sempre. Ele era forte, apesar de tudo, e ainda era jovem nos seus cinquenta anos.

Os dias foram passando, vi que as responsabilidades iam aumentando junto com os problemas que gradativamente insistiam em aparecer. As finanças estavam em baixa, aos poucos fui me pondo a par da situação dos negócios. E posso garantir que não era nada animador, pois cada vez que eu saia daquele lugar, carregava a sensação de que as coisas iriam ficar ainda piores. Ele era um homem reservado, não gostava de comentar à respeito do seu trabalho e dos procedimentos que adotava em seu escritório. Isso tornou tudo ainda mais difícil, não sabia nem por onde começar.

Apesar dos meus vinte e dois anos, a relação de dependência que existia entre nós era visível. Não sabia ao certo como agir, como cuidar de uma família e, principalmente, como sustentá-la. Havia muito medo em mim, por saber que deveria enfrentar o desconhecido, pelas novas situações com as quais iria deparar-me. Ele realmente era o chefe da família, nosso porto seguro, nosso esteio. E agora não estava mais ali. Então, eu me perguntava: “Quem daria as ordens daquele momento em diante?”

Dias turbulentos se seguiram, eu na faculdade, tentando concluir o trabalho final que eles chamam de monografia. Meu orientador ausente, fazendo seu curso de Mestrado, o contato ia seguindo escasso, somente através de e-mails. O estágio num provedor de internet onde eu era web-tudo, começou a ser a nossa única fonte de renda. E ali, no meio de tudo, eu o via partindo, lentamente.

Nosso último encontro aconteceu alguns dias antes do seu aniversário que seria em trinta e um de agosto. Foi um momento difícil, e particularmente, eu não queria ir. Não queria vê-lo naquele estado, e no fundo eu sabia que ele estava nos deixando. Relutava em despedir-me, mas fui e tentei ser forte o quanto pude. Parentes mais próximos também estavam lá, e minha tia, sempre dedicada, também. Ela e minha mãe se revezaram durante os dezenove dias de internação.

Entrei no quarto da enfermaria. Assim que me viu abriu um largo sorriso, não conseguia falar, talvez de emoção. Aproximei-me de seu leito.

- Oi pai! Disse num longo e apertado abraço, e foi a única coisa que consegui dizer, enquanto segurava as lágrimas. Queria ter dito muito mais... queria ter dito o quanto o amava. Mas sempre fui uma pessoa reservada também, daquelas que sofrem da dificuldade em demonstrar sentimentos. Não me deixava arrebatar por nada. Podia ter feito mais, podia ter falado algo que o confortasse, mas realmente não pude.

Permaneci no quarto conversando com os demais, mas ao mesmo tempo eu estava muito longe. Estava como num estado de sonho, nada parecia real, eu desejava acordar logo, e retornar a nossa vida.

Ao sair de lá, tive que ir até a faculdade. Uma sensação de morte me rondava. Tinha a certeza de que o fim estava muito próximo e tudo isso me deixava assustada. Encontrei meu namorado no caminho.
- Como foi lá? - Abracei-o e chorei, chorei tudo que estava preso, tudo que me apertava o peito, eu não podia mais aguentar toda aquela pressão que me sufocava.

- Ele está morrendo, eu sei que está! Foi uma despedida!

- Não, você está enganada. Ele é forte, ele vai sair dessa, estão cuidando dele. Estão fazendo tudo que é possível.

Eu sabia que não havia mais o que ser feito. Os médicos já haviam negado a possibilidade de removê-lo para um centro melhor em outro estado. Disseram que ele não suportaria a viagem. Seus rins já haviam paralisado e seu coração crescia assustadoramente. Era o fim progressivo e lento que o levaria dali mais alguns dias.

Na noite em que minha mãe chegou em casa, achei estranho e perguntei:

- Por que você não ficou lá com ele? - eu estava visivelmente alterada, minha tia tinha ficado no lugar dela para ela descansar. Mas eu não aceitava isso e começamos a discutir.

- Ele está bem, está estável. Sua tia disse que eu podia vir que qualquer coisa telefonaria para nós.

- Você não devia ter saído de lá, não devia! - tranquei-me no quarto e comecei a chorar. Eu já sabia.

Naquela madrugada, eu senti a presença dele no quarto. Sabia então, que ele havia partido e tinha vindo se despedir. Quando entraram, minha tia e minha mãe, cheias de cuidados com as palavras, eu estava acordada. Eu já sabia. Havia uma ligeira movimentação na sala, provavelmente os vizinhos mais curiosos. Sentia vontade de chorar, e chorei nessa hora e nunca mais.

Não houve mais tempo para lágrimas, não houve sequer tempo para assimilar essa nova realidade. Só um vazio constante que se instalou após esse dia e a certeza de que a partir daquele momento, eu deveria ser ainda mais forte e cuidar de tudo e de todos. Eu havia assumido o posto de chefe da família, da minha pequena família, onde éramos só minha mãe e eu.

O significado da morte agora não era mais abstrato, era bem real. E definia-se naquilo que antes eu chamava de ausência. Na verdade, uma ausência para sempre, onde não se terá mais oportunidades de dizer aquilo que não pôde ser dito antes. Uma saudade apenas, que atormenta as horas mais inconstantes do dia. Quando precisasse dele, não estaria mais lá, não em sua forma sempre acolhedora. Então me dei conta de que eu não era mais a menininha do papai, deveria ser a mulher de vinte e dois anos. Os sonhos acabaram nesse momento, só havia a realidade pela frente.


** Publicado no Livro "Autores Brasileiros do III Milênio" - Edição especial 2009 da Câmara Brasileira de Jovens Escritores (CBJE)


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